Lembranças de um baile de carnaval | Galciani Neves
Texto da exposição "Lembranças de um baile de carnaval", 27˚ Temporada de Projetos do Paço das Artes, São Paulo, 2023
Sem paladar, sem olfato. Sintomas que se anunciavam e nos contornavam num estado entre a dúvida e o temor da morte. Assim, a pandemia demarcou tempos e espaços. Não quero com esse começo de texto tematizar os horrores pandêmicos, talvez propor que elaboremos por alguns instantes: tudo tem uma história, um passado que pode ser reconstruído no corpo e com o corpo? Como criamos relatos sobre algo que se relaciona com o seu próprio passado e com o presente que se enfileira diante de nós? E desde quando nós nos perdemos diante de marcos, datas, temporalidades, mensuração e registro do tempo? E há quanto tempo, assistimos, enquanto nos contorcemos, a uma oficialidade de narrativas impostas e quase sempre com pouca chance para nos reconhecermos?
Karola Braga realiza seus trabalhos a partir de uma profícua atenção a essas questões. E elabora mais outras tantas indagações para “expressar o caráter mediado da criação artística e da obra de arte” (Susan Sontag, 1987, p. 21), junto a processos de construção historiográfica, nos quais o cheiro, os aromas e os sentidos do olfato são intencionalidades muito preponderantes. Ou como a artista propõe, produz poeticamente em “um livre trânsito entre as linguagens, criando narrativas que exploram noções de presença/ausência, memória/esquecimento”.
No projeto Lembranças de um baile de carnaval, (apresentado no Paço das Artes, na cidade de São Paulo de 2023, momento em que, convalescentes e calejades de tanto luto, tentamos nos reerguer com o fim da Emergência de Saúde Pública referente à COVID-19), Karola nos convida aos sentidos olfativos de um Carnaval – festa, desbunde, celebração popular da qual tanto nos ressentimos. E logo pelo cheiro, pelo olfato, a artista constitui um espaço que conta histórias para estarmos juntes numa fantasia de real.
O que nos acontece se dissemina de acordo com as palavras e os interesses de quem nos vê de cima. O modo como esses discursos são produzidos e distribuídos rima quase sempre com negligência, apagamento, invisibilização, com um protagonismo de “grandes figuras”. Tratam-se de histórias com fontes “oficiais” que pulverizam monumentos nas cidades e paradigmas dedicados à posteridade. Com essa instalação, Karola nos provoca a imaginar o que seria de nós e das coisas que conhecemos, se as fabulações se despedissem de sua pretensa hegemonia. Assim, sua poética pode ser pensada a partir de uma perspectiva de memória e projeto, em simultaneidade e convivência, promovendo entrelaçamentos de possíveis nesse tempo/lugar que chamamos de contemporaneidade. E, sim, o Carnaval é um chão a se pisar e de onde podemos imaginar pessoas, lugares, músicas, modos de estar aqui e performar subjetividades.
Esses gestos de Karola de construção de memória e que nos reavivam experiências por meio de cheiros nos levam por túneis de tempo, onde a circulação livre por entre datas nos mostra possibilidades de recontar narrativas, de imaginar como os fatos se deram e de retraçar sentidos de histórias. Histórias íntimas, segredos inflamáveis, fatos que nunca compartilhamos. Narrativas ditas como certas, fatos tornados oficiais... Tudo se desmembrando, tudo se reorganizando e nos fazendo outres. Em uma instância política-poética, realinhavar histórias pode nos fazer cultivar perguntas: Como contamos uma história? A quem recorremos para ter materiais, testemunhas, documentos para tatear “a verdade”? A verdade importa? Ou a sensação no corpo nos diz mais sobre o que somos? É possível identificar os verdadeiros agentes da(s) história(s)? Será que resistiriam às pressões e violências para nos contar o que lhes aconteceu? E nós estamos preparades para escutar, realizar escolhas narrativas, e, mais uma vez, resistir a pressões para pluralizar acontecimentos? E as oralidades? Como correm em nossas veias e corpos, circunscrevendo-nos, e nos inscrevendo, como gente (como diz Leda Maria Martins)?
Vejam, não se trata do Arlequim e da Colombina, nem tampouco de um revisionismo. Tudo começa quando a artista olha para uma embalagem de lança-perfume e a partir de suas texturas, materiais, escritos, vestígios, passa a perscrutar o produto e seus usos e lançar-se aos tentáculos da imaginação. Tal embalagem pode ser percebida por Karola como um novelo de muitos fios, todos imbricados, entrelaçados, sobrepondo tempos, lugares, personagens e devaneios (também, e por que não?). Karola elabora microcosmos com personagens do Carnaval e vai fiando uma teia: baile, perfumes, fumaça, os abismos de prazer, as imposições sociais, as tarefas sexistas... Os cheiros contam histórias, nos levam a entrecruzar contextos.
A instalação conta com um nebulizador, textos e pequenas esculturas de cerâmica, que emulam uma embalagem de lança-perfume, além de confetes e serpentinas. Os tons de rosa que cobrem paredes, objetos e mobiliários constituem uma atmosfera onde vozes, memórias, pensamentos parecem ali encontrar pouso, onde histórias podem ser inventadas, fabulações podem ser narradas. Sentimos com o corpo os cheiros nos revolvendo, nos fazendo dançar numa coreografia temporal entre o aqui-agora, outros carnavais e os que virão. Bailes, farras e os muitos cheiros narram e exalam: uma criança, o perfume de sua mãe, o homem gay que passeia no baile, uma outra mulher que seduz os foliões, o beijo de apaixonades, amigas bebendo. Compartilhamos, então, o mesmo ambiente com o suor que gruda os corpos, as salivas que escorrem entre as bocas, a bebida que escapa dos copos, a urina que empesteia os banheiros, os doces, cítricos, azedos fluindo... e segue o baile.
Galciani Neves - Curadora, professora e pesquisadora no campo das artes visuais